terça-feira, 22 de julho de 2008

Fé em Deus!


Ontem, foi noite de cinema after-hours. O BOPE entrou-me pelos olhos, cabeça, entranhas adentro. Atirou a matar. Atirou para limpar a sujidade da favela. Atirou contra o lobo mau. Atirou ao som do choro das criancinhas. Atirou para as mães dormirem descansadas e poderem enterrar os seus filhos. Atirou porque o comando não é só "consciência social". Atirou porque a polícia municipal faz vista grossa. Atirou porque os filhinhos de papai gostam de brincar de traficante na Universidade. Atirou para não morrer.

(Lembrei-me do assalto. Dos putos escanzelados com cara de criança e voz de monstro. Do olhar esgazeado da dependência. Da violência das palavras e dos gestos. Do perigo eminente, da garrafa partida apontada à minha barriga, do medo aterrador. Lembrei-me da força que as minhas pernas ganharam quando me consegui soltar. De não olhar sequer para trás. De ficar sem fôlego e de as palavras tropeçarem nas lágrimas e nos soluços. Da indiferença da polícia turística. Da raiva e do calor húmido de Natal.)

Cheguei a casa tarde mas desperta. Com realidade a mais a sair-me pelos poros. Antes de adormecer, pensei que não passava de um exercício de ficção brilhante. O problema é que o que para mim é entretenimento puro ou quanto muito uma lição de sociologia é o dia-a-dia de milhares de pessoas do outro lado do Atlântico. Uma guerra aberta sem fim à vista e onde todos são culpados. De uma forma ou de outra. Os aviõezinhos ou fogueteiros começam desde cedo a vender maconha, pó ou o que quer que seja. Para sustentar a família, no início, para sustentar o vício, pouco depois. E é aqui que começa a perversidade: os grandes dão-lhes um empurrão para que fiquem agarrados e o ganha-pão transforma-se em produto consumível. Seguem-se os roubos, porque os traficantes não perdoam e o dinheiro tem que aparecer custe o que custar. Depois, tal como mostra o filme, os consumidores também têm culpas no cartório. Afinal, são eles que alimentam toda esta cadeia. E, claro, a polícia entra no jogo, facilitando a vida aos patrões do ghetto em troca da sua pele a salvo e de uns bons contos de rei. Haverá excepções certamente, mas o filme mostra que esta instituição está corrumpida até ao tutano. A precaridade salarial, os perigos a que estão sujeitos a troco de nada e a filha-da-putice pura são apresentadas como as causas para o estado das coisas. Os policias são seres humanos que têm medo de morrer, pais de família com filhos para sustentar, profissionais desmotivados que não acreditam na mudança. Resta o Batalhão de Operações Policiais Especiais, os homens de negro duros de roer e incorruptíveis. Actuam quando os outros falham e não compactuam com o sistema, porque eles ainda acreditam que podem fazer a diferença.
O filme começa com o BOPE a irromper pela favela ao som do Baile Funk . O ritmo é frenético e a câmara acompanha cada movimento, levando-nos para dentro de cena. Sentimos a angústia dos únicos dois polícias honestos do Rio e seguimos a par e passo a entrada triunfal dos homens de negro. Sente-se quase o bater do coração das personagens, a respiração ofegante, o terror dos civis. Assistimos a um rol de horrores como se de um espectáculo se tratasse e se não fosse a narração compassada do Capitão Nascimento as imagens tornar-se-iam insuportáveis. Ele é a voz da consciência. Conduz-nos através do desenrolar dos acontecimentos, abre o coração, confessa os seus próprios erros. Vemos a relidade como ele a vê, uma parte dela, uma verdade possível, uma verdade polémica o quanto baste. É por isso que Tropa de Elite é um produto ficcional e não um documentário. Genialmente realizado, interpretado e editado. E, cá entre nós, uma excelente amostra do bom cinema na língua de Camões que por lá se faz!

Sem comentários: